"Da Senzala à Casa-grande"

A cachaça nasceu pobre, bastarda e clandestina. É fruto do acaso e resto do processo de fabricação do açúcar. Um humilde subproduto. Senão vejamos. Seu berço foi uma colônia portuguesa, segundo alguns historiadores, descoberta, também, por acaso. A exuberância da natureza tropical associada à valiosa madeira avermelhada – o Pau-Brasil – venceu o sentimento religioso e a terra de Santa Cruz recebeu o nome Brasil.

Aquele novo mundo, vasto mundo, não atendia a ambição mercantilista sedenta de metais preciosos. Era pobre se comparada ao mundo hispânico. Porém, o solo fértil dava o que plantava, registrou o cronista Caminha. Tanto assim que as mudas de cana-de-açúcar, trazidas em 1502, pelo português Gonçalo Coelho, tornaram-se, por dois séculos, a base da economia brasileira.

“O Brasil é o açúcar” disse o Padre Antonio Vieira. De fato, a nova riqueza não trouxe, apenas, o escravo e o explorador holandês, braço da Companhia das Índias Ocidentais; a nova riqueza fundou no Brasil uma Civilização e no seu interior um modo muito peculiar de sociedade, economia e cultura.

No rastro da produção da nova riqueza, aparece uma borra, uma espuma do caldo de cana fervente que acumulada em cochos de madeira transformava-se em garapa azeda, consumida pelos animais e, segundo relatos da época, pelos escravos. Por acaso, então, a garapa azeda, uma vez destilada em alambique de barro, produziu uma bebida cuja origem, inclusive do nome, é objeto de controvérsias históricas.

Não importa como surgiu e o porquê do nome: cagaça era a espuma; cachaço era a carne de porco, amolecida pela garapa. A verdade é que a cachaça nasceu, como já foi dito, pobre e tornou-se clandestina quando a Coroa Portuguesa, por meio da Carta Régia de 13 de setembro de 1649, proibiu a fabricação da cachaça e ordenou a destruição de alambiques. A “lei” não pegou. Em 1661, a metrópole suspendeu a proibição, mesmo quando a bagaceira e o vinho começaram a sofrer com a concorrência. E haja tributação para desestimular a produção do novo destilado. Dois bons exemplos demonstram o emprego de parte da arrecadação: o subsídio literário (1773) e o financiamento da reconstrução de Lisboa (1756), devastada pelo terremoto de 1755. A cachaça foi se libertando do estigma do consumo dos pobres infelizes escravos, índios e negros, para que afogassem as mágoas e anestesiassem as feridas abertas por uma vida de horrores.

Há quem afirme que D. Pedro I utilizou a cachaça para comemorar a Independência do Brasil. No entanto, o preconceito nasce forte com a proclamação da República até que o Movimento Modernista (1922) valorizou a cultura nacional e celebrou o casamento da feijoada com a cachaça, futuras paixões brasileiríssimas. É importante lembrar pque, na comemoração dos 500 anos do descobrimento, o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso saudou com cachaça a comitiva do Governo de Portugal. É a cachaça chegando aos palácios governamentais.

Pelo visto, a origem da cachaça não seria uma sentença passada em julgado. O seu destino mudou na medida em que seu consumo aumentou. A cachaça passou a ser considerada sob a ótica das possibilidades econômicas. Na mesmo toada, o processo produtivo introduziu os alambiques de cobre e deles saiu a aguardente de cana que, aos poucos, chegou à Casa-Grande, passando a ser consumida pelos senhores de engenho, autoridades, a população em geral, assumindo inclusive, o papel de moeda no pagamento do tráfico de escravos.

Antes de dar um salto no tempo para chegar aos nossos dias, é importante demonstrar que antepassados mais remotos sempre tiveram como marcas bebidas alcoólicas e que, ao longo do tempo, se tornaram elementos de identidade cultural.

Com efeito, as bebidas alcoólicas são distribuídas em dois grupos: fermentadas e destiladas. Mesmo sem nenhum conhecimento sobre o surgimento e a utilização desses grupos por seres humanos, é fácil concluir que as fermentadas (vinhos, cervejas, etc…) foram as primeiras a serem consumidas. Isso porque a fermentação é um fenômeno natural, que ocorre durante a deterioração de produtos orgânicos. Já a destilação é um processo onde se emprega calor para separar produtos voláteis de uma mistura através da vaporização e da condensação.

Os registros existentes dão conta de que foram os Egípcios que primeiro conheceram algo parecido com o que se denomina Cachaça. O uso era outro, o que eles faziam era curarem-se de eventual mal estar, inalando o vapor de líquidos aromatizados e fermentados absorvidos diretamente do bico de uma chaleira, em um ambiente fechado.

No Tratado da Ciência escrito por Plínio, o velho, que viveu entre os anos de 23 e 79 depois de Cristo, os Gregos registram o processo de obtenção de ácqua ardens – a água que pega fogo – absorvendo, com um pedaço de lã, o vapor da resina de cedro, do bico de uma chaleira. Ao torcerem a lã, obtinham a bebida denominada Al-kuhu. Os alquimistas da época atribuem à bebida propriedades medicinais e místicas, transformando-a em “água da vida”. A expansão do Império Romano leva a água ardente para a Europa e para o Oriente Médio, cabendo aos árabes, por volta dos anos 750 a 850 depois de Cristo, a invenção de equipamentos de destilação muito parecidos com os utilizados nos dias de hoje.

Com a definição da tecnologia de produção, tanto no velho quanto no novo mundo o processo de destilação passa a ser aplicado em frutas e cereais típicos e abundantes de cada continente, de cada país e de cada região.

Como se vê, nas estepes da Ásia Central, onde há abundância de cereais como o trigo e a aveia, nasceu a vodca. Nas montanhas da Escócia e da Irlanda, pródigas em malte e turfa, surgiu o uísque. No México, onde a principal cultura disponível é o cactus, se fez a tequila. Enfim, ao longo da história, cada povo escolheu sua bebida nacional a partir das matérias-primas de que dispunham para produzi-la.

Disseminada no Brasil a partir de 1532 por Martin Afonso de Souza, a cana-de-açúcar foi inicialmente plantada na capitania de São Vicente, hoje Estado de São Paulo e, depois, em 1535, Duarte Coelho implementou a cultura em Pernambuco e dessas capitanias foi levada para as demais regiões do País. Os engenhos de açúcar rapidamente se espalham por toda a área litorânea e o Brasil teve por um longo período a sua economia pautada na cana-de-açúcar. Os colonizadores que aqui chegaram, principalmente os açorianos, já conheciam o alambique e o processo de destilação tendo, inclusive, tradição no destilo e consumo de outros tipos de aguardentes, a exemplo da bagaceira, produzida a partir do bagaço de uva.

Matéria-prima abundante no Brasil-colônia não é de se estranhar que logo nos primeiros anos de colonização os subprodutos da produção de açúcar, bem como o caldo da cana-de-açúcar fosse utilizado na produção de uma espécie de bebida denominada, à época, aguardente da terra. Não se sabe precisamente quando e onde o termo cachaça se aplicou à aguardente e nem a data precisa do início da sua fabricação. O que é possível afirmar-se é que desde o início do século XVII, produzia-se no Brasil um tipo de aguardente com o caldo da cana e outra das borras do mel da cana, do melaço, por destilação, e que seria a legítima cachaça.

Existem diversas explicações sobre a origem do nome “cachaça”, contudo, o documento mais antigo que emprega o termo cachaça em lugar de aguardente, trata do ano de 1742, segundo Messias S. Cavalcanti, Ed. Sá Editora, pg. 49, Apud Registro Geral, vol. V, pg. 501. O nome “Cachaça” vem do espanhol “cachaza”, que significava, bem antes de 1500, na Península Ibérica, “uma aguardente bagaceira de qualidade inferior”, como ressaltado por Marcelo Câmara, Ed. Mauad, pg. 16. Porém, a palavra “cachaça”, com esta grafia e este som, é uma criação do povo brasileiro e do português falado no Brasil e o seu uso foi generalizado em meados do século XVIII.

CACHAÇA, UM PRODUTO VERDE E AMARELO

“Cachaça é a denominação típica e exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil, com graduação alcoólica de 38% a 48% em volume, a 20º Celsius, obtida pela destilação do mosto fermentado do caldo de cana-de-açúcar com características sensoriais peculiares, podendo ser adicionada de açúcares até seis gramas por litro”.

(Instrução Normativa nº 13, de 29.06.2005, do MAPA).

“A cachaça pertence ao povo brasileiro. Está presente na formação e evolução da nossa gente. Nenhuma outra riqueza, nem o cacau, nem a seringueira, nativos, ou o café ou o fumo, neutralizados, penetrou e cresceu tanto no imaginário popular, gerou e multiplicou tanta funcionalidade, emoção, lógica, hábitos, enfim, tanta vital e perturbadora Cultura como a cachaça”. (Câmara, Marcelo. Cachaça: prazer brasileiro. Rio de Janeiro: Muad, 2004)

Marcelo resume admiravelmente a incorporação da cachaça à alma do povo brasileiro. E a constatação mais importante: os preconceitos estão sendo superados. É uma bebida que venceu a luta de classes; superou a boçalidade que separa brega e chique; apaixonou os paladares, pode ser ingrediente gastronômico e, nas refeições, a cachaça é “abrideira”, companheira e “saideira”.

Ainda assim, algumas fronteiras precisam ser superadas. Uma delas, no mercado interno, é o desconhecimento da excepcional qualidade do destilado mais vendido no Brasil e bebido na mistura consagrada pelo paladar dos gringos:a”caipirinha”.

O mercado é uma enorme avenida a ser percorrida. A nacionalização da bebida é recente (Decretos nº 4.062/01, 4.072/01 e 4.085/03). O grande desafio é comunicar intensamente a valor e o sabor da Cachaça. Uma coisa é certa: quem provar uma “pinga” de boa qualidade celebra e eterniza uma relação de satisfação e prazer.

Hoje, com a atualização dos conhecimentos tecnológicos e o emprego de um rígido controle de qualidade na cadeia produtiva, algumas marcas de cachaças alcançam altos níveis de qualidade e padrões que no mínimo se igualam aos melhores destilados fabricados no mundo. Na nossa avaliação, a extrema versatilidade do nosso destilado o coloca em vantagem perante os demais. Pode ser consumido puro ou em coquetéis, novo ou envelhecido, gelado ou natural, e, atualmente, são utilizados cerca de 36 tipos de madeiras no seu envelhecimento, cada uma deixando uma característica particular à bebida, com cores amareladas, douradas ou neutras, com o aroma da cana combinando com os traços peculiares de cada madeira, dando-lhe um sabor marcante, ardente, forte e delicioso a um dos mais completos e fascinantes destilados da atualidade.

A produção brasileira de aguardente (oficial) é de cerca de 1,7 bilhões de litros/ano. Dados, porém, estimam que a produção real seria de mais ou menos o dobro disto, em se considerando a produção clandestina. Setenta por cento (70 %) da produção brasileira é de aguardente industrial ou de coluna e apenas trinta por cento (30 %) é de cachaça artesanal ou de alambique, produto de maior valor agregado e de qualidades sensoriais únicas. Na produção artesanal ou de alambique, todas as reações físico-químicas, em todas as suas fases de produção acontecem naturalmente, sem a interferência humana e sem a adição de substâncias artificiais que aceleram, abreviam ou modificam os processos e os resultados. Já o processo industrial ou de coluna caracteriza-se pela produção em larga escala onde todo o mosto (caldo de cana fermentado) é transformado em etanol, numa fermentação rápida, provocada por substâncias químicas artificiais (uréia, ácido sulfúrico, etc…). O teor alcoólico do produto obtido gira em torno de 47% ao volume de 20ºC, necessitando da adição de água, xarope de açúcar e caramelo (estandardização) para a obtenção de uma graduação alcoólica em torno de 38% e 41%. São utilizados processos químicos e tecnologia de ponta para adaptação aos padrões que a legislação e o mercado exigem.

O Brasil exporta o insignificante percentual de 1% (um por cento) da sua produção de cachaça, o que nos leva a seguinte indagação: se a cachaça é um destilado de excelente qualidade, por que ainda não “ganhamos o mundo”?. A resposta se traduz em duas observações: a primeira é que o próprio brasileiro não conhece o seu produto e, por total desconhecimento, o encara de forma estranha e preconceituosa; segunda, lamentavelmente, cerca de 85% (oitenta e cinco) do que se fabrica são produtos de baixa qualidade, em alguns casos com a utilização de técnicas ultrapassadas e métodos inadequados perante a legislação. Há falhas no controle de qualidade e os padrões químicos muitas vezes são nocivos ao consumo humano.

Atualmente, vários institutos e universidades possuem centros especializados e pesquisas voltadas para garantir a melhoria contínua da cachaça através de treinamentos e formação de profissionais interessados em atingir a excelência do produto.

Recife (PE), 2019.
José Carlos Dantas
Gustavo Krause